12 de março de 2013

Vende-se carros

Uma celeuma promovida por esta minha postagem aqui me deixou com vontade de voltar a escrever no blogue. Aliás já estava com vontade antes, mas faltava aquele empurrão. O empurrão veio, e despenquei a escrever.
Um dos assuntos que me têm motivado a refletir ultimamente é um tanto batido, mas continua precisando ser discutido. Trata-se da voz passiva pronominal, sobre a qual já escrevi aqui e aqui também. Mas volto ao assunto.

Uma questão recente de concurso promovido pelo Cespe afirmou, sobre a frase "Esperava-se que a metrópole deixasse de ser tão centralizadora", que a oração iniciada pela palavra "que" seria complemento de "Esperava-se". Inicialmente, o gabarito deu a afirmação como certa; após os recursos, como errada.

Tem razão o gabarito definitivo. A oração tem função de sujeito, numa estrutura de voz passiva pronominal. É o mesmo caso ilustrado no título desta postagem: quando alguém escreve "Vende-se carros", está pensando que "carros" é a coisa vendida, portanto objeto, daí não fazer a concordância entre esse termo e o verbo. Tal raciocínio decorre da associação tão frequente e tão desatenta entre sentido e análise gramatical. Professores mal preparados ensinam que sujeito é quem pratica a ação e objeto é quem a sofre. Tais explicações fundamentam-se exclusivamente em noções de sentido, deixando de lado critérios sintáticos e estruturais da língua. Ora, é evidente que o sentido de uma frase é importante, aliás o mais importante que há, uma vez que, se alguém quer vender carros, o que importa mesmo é o cliente saber disso. Mas, se fosse só para entender o sentido de frases simples, note-se que ninguém precisaria falar em sujeito, objeto, predicado ou qualquer outra classificação gramatical. (Esse raciocínio leva frequentemente à conclusão de que estudar gramática não serve para nada. De fato, se nosso objetivo fosse somente estabelecer comunicação por meio de mensagens simples, ninguém precisava estudar gramática. O que ocorre, porém, é que usamos a língua para expressar -- e talvez formar -- toda a nossa complexidade, e não somente para transmitir informações sobre compra e venda de carros. Para isso, o estudo da gramática é não só necessário, mas desejável e estimulante.)

Voltando ao ponto anterior: o funcionamento gramatical do português ou de qualquer língua tem relação íntima com o sentido do que se diz ou escreve, mas não se limita a ele. Por exemplo as concordâncias: eu não preciso dizer "Os textos antigos revelam a história etc" para ser entendido, bastaria dizer: "Os texto antigo revela a história etc". Ou seja, a concordância não é um fator determinante de sentido, e, sim, um padrão sintático, que evidentemente muda a depender da variedade linguística, principalmente no que se refere ao contexto ou grau de formalidade. Assim também vários outros mecanismos sintáticos não são indispensáveis para o sentido, mas seguem um padrão estrutural da língua, historicamente construído.

Finalmente, vende-se carros: o entendimento de "carros" como objeto me permitiria substituir o termo pelo pronome "os", como qualquer outro objeto (li um livro: li-o ou o li; comprei um carro: comprei-o ou o comprei etc). Pelo mesmo critério, a frase ficaria: Vende-se-os? Os vende-se? Vende-os-se? Se os vende? Ora, qualquer falante de português sabe que essas frases não existem, ninguém diria jamais "vende-se-os". É uma forma impossível na estrutura do português. Donde se conclui que não posso considerar "carros" como objeto. Apesar disso, parece evidente que os carros não vão vender nada. De modo que também não se trata do agente da ação. O estudo atento mostra, no entanto, que o sujeito de um verbo pode indicar o agente da ação ou o paciente dela, ou mesmo nem um nem outro, quando o verbo não expressa ação. Sujeito é uma noção sintática, cuja definição tem a ver com a conjugação do verbo na variedade padrão da língua. Quanto conjugamos um verbo (eu tenho, tu tens, ele tem etc), estamos testando exatamente o funcionamento desse verbo com os seis sujeitos possíveis. Isto quer dizer que o sujeito é, sintaticamente, a explicitação de uma dessas seis alternativas. Às vezes isso coincide com o agente da ação. Mas não na voz passiva, em que o verbo seleciona como sujeito justamento o paciente, e não o agente da ação.

Por isso se justifica a análise de "carros" como sujeito e, portanto, num funcionamento modelar da língua, é necessário usar "Vendem-se carros". A discussão aqui é sobre se a concordância é necessária num anúncio de loja. Minha opinião é que não. A frase "vende-se carros" ocorre em contextos de pouca formalidade e normalmente é direcionada a um público muito amplo e diverso. Os carros não serão piores ou melhores se o dono da loja deixar de fazer a concordância. É capaz até que eles sejam um pouco mais baratos, na medida em que o dono economizou os serviços de um revisor, e um pouco de tinta. Mas divago. Falarei disso em outra ocasião.

Entender "carros" como objeto para justificar a ausência de concordância tem duas implicações: a primeira é que permitiria uma estrutura que ninguém diz ou escreve, que é "vende-se-os"; a outra, gravíssima, é que, automaticamente, todas as placas em que se escreveu "Vendem-se carros" passam a estar erradas, porque não se faz concordância de verbo com o seu objeto, nunquinha. Isto é, milhares de placas, para não falar em milhares de frases da nossa literatura, ficam erradas. Fico proibido de fazer a concordância, se me der vontade. Machado de Assis não serve mais de exemplo porque não escreveu "vende-se carros" em lugar nenhum.

Trata-se de alternativa péssima, a meu ver. Melhor é, mantendo-se a análise de "carros" como sujeito, permitir, como concessão à regra geral (há tantas outras mesmo) a manutenção do verbo no singular, para reforçar a ideia de impessoalidade ou de indeterminação do agente. Isso faz todo o sentido, e a frase seria admissível mesmo no nível formal. Mas chamar "carros" de objeto é um erro de análise sintática, ponto final.

Da mesma forma, na frase do concurso que citei acima ("Esperava-se que a metrópole deixasse de ser tão centralizadora"), a estrutura oracional "que a metrópole deixasse..." equipara-se a "carros", do outro exemplo, e funciona, a oração toda, como sujeito de "Esperava-se", que é uma forma de voz passiva. O mesmo raciocínio vale: se eu achasse que a oração "que a metrópole deixasse..." é objeto, estaria legitimada a pronominalização dela por "o", escrevendo-se "Esperava-se-o". O que, novamente, é impossível. Por isso acertou o Cespe quando alterou a resposta do item para considerá-lo errado.

A principal diferença sintática entre frases como "vende-se carros" e "precisa-se de empregados" é que, na segunda, o elemento paciente da ação está preposicionado, o que o impede de ser considerado sujeito. Dessa forma, ainda que o termo esteja no plural, "precisa-se" estará sempre no singular. No Brasil, somente por hipercorreção ouvimos alguém dizer "precisam-se de empregados", forma que o padrão e o vulgo rejeitam. A intenção semântica é a mesma: indeterminar o agente, quem pratica a ação; mas não são as mesmas relações sintáticas. A primeira tem sujeito determinado paciente, a segunda tem sujeito indeterminado e objeto indireto.

Veja-se um exemplo com o verbo "chamar", que pode ser complementado por objeto ligado por preposição ou sem ela. Posso dizer: Chamei meu filho de João ou Chamei a meu filho de João (o de é opcional em ambos os casos para introduzir o predicativo). Numa estrutura de impessoalização, eu poderia dizer:

1) Chamou-se meu filho de João ("meu filho" = sujeito paciente --> voz passiva);
2) Chamou-se a meu filho de João ("a meu filho" = objeto indireto --> voz ativa com sujeito indeterminado).

A preposição faz toda a diferença: na frase 1, "meu filho" é sujeito paciente, como "carros" lá em cima. Na frase 2 não posso repetir a análise: o sujeito não pode ser preposicionado, por isso tenho que considerar "a meu filho" como objeto. Ora, neste caso, a pronominalização ajuda a validar a reflexão que vimos seguindo. A frase 1 não pode ser reescrita como "Chamou-se-o de João"; mas a frase 2 pode ficar "Chamou-se-lhe de João".

Conclusão: se o termo não pode virar pronome oblíquo, não é objeto; se pode, não é sujeito.
Isso tem implicações na concordância, também. As frases 1 e 2 ficariam, caso se tratasse de vários filhos:
3) Chamaram-se nossos filhos de João e Maria.
4) Chamou-se a nossos filhos de João e Maria.

No caso da frase 3, pelo mesmo motivo por que acho lícito validar a concordância "Vende-se carros", acho justo que se admita "Chamou-se nossos filhos de João e Maria" na norma-padrão. Mas disso muito teórico ainda diverge.

A conclusão da postagem, a qual acabou saindo mais longa que o esperado, é a seguinte: não se pode fazer a mesma análise para as frases "Vende(m)-se carros" e, por exemplo, "Precisa-se de empregados", em decorrência de regras gramaticais que vão bem além do sentido. E estou falando "regras" no seu sentido de recorrências, e não de prescrições. Não é por insistência de professores que os alunos deixam de dizer "vende-se-os": não se diz isso porque a gramática interna da língua, aquela que todo falante fluente conhece ainda que meio inconscientemente, não abrange tal fórmula. Assim também quase não se diz, mesmo em nível menos formal, "precisam-se de empregados".
Por isso é forçoso reconhecer a existência da voz passiva sintética (ou pronominal) no português do Brasil, em oposição ao sujeito indeterminado pela palavra se, embora a concordância dessa forma passiva seja variável e, a meu ver, se devesse aceitar como regular uma estrutura do tipo "vende-se carros".

14 de dezembro de 2010

Uma vírgula!

O uso da vírgula causa discussões e dúvidas infinitas. Há muita margem para liberdade no uso desse sinal, mas há também critérios bem-definidos que precisam ser entendidos.
E a primeira coisa a entender é que a vírgula não é para marcar respiração. Nem corresponde necessariamente a uma pausa na fala. O que quer dizer que uma frase bem comprida pode não ter vírgula nenhuma, e nem por isso vamos perder o fôlego no meio dela.
Outra ideia errada é que a vírgula serve para desfazer ambiguidades. Não, não desfaz. Se a frase é ambígua por defeito de construção, vai continuar ambígua se você sair enfiando vírgulas onde bem entender. Aquelas brincadeiras de ficar mudando vírgula de lugar para mudar o sentido são um passatempo, não correspondem a dúvidas de pontuação no mundo real.
A vírgula, na verdade, é um marcador sintático, marca um intervalo sintático, é típica da escrita, portanto nem sempre encontra correspondência na fala. Os critérios para uso da vírgula dependem da estrutura da frase, e os principais deles são os seguintes:

1) Deslocamento de adjunto adverbial: usa-se a vírgula para marcar a mudança de posição do adjunto adverbial (aqueles termos que normalmente atribuem circunstâncias ou qualificações ao verbo, ou a toda a oração). A posição normal deles é o fim da frase, então, quando se antecipam, marcam-se com vírgula. O uso da pontuação é dispensável quando o adjunto adverbial já estiver claramente marcado e seu deslocamento não implicar dúvidas ao leitor sobre a estrutura da frase. Por exemplo, posso não pontuar quando o adjunto deslocado for curto, ou claramente adverbial (como os advérbios terminados em –mente). Se o adjunto adverbial deslocado for uma oração (oração subordinada adverbial, ou seja, tem verbo no meio), a vírgula ocorre sempre; aliás, com oração adverbial, é frequente a vírgula ocorrer mesmo sem inversão.
Observe-se que estamos falando de termos adverbiais, ou seja: não se usa vírgula para marcar inversão dos termos principais da oração, como sujeito, objeto direto e objeto indireto.

2) Intercalação de termo acessório (exceto se restritivo): usa-se vírgula para marcar o acréscimo de um termo acessório, em qualquer posição na frase, como apostos, vocativos, orações adjetivas, orações intercaladas, modificadores adverbiais relacionados genericamente a toda a oração (como Infelizmente, Segundo o ministro, Na minha opinião), expressões retificadoras (isto é, ou seja, a saber  etc) e predicativos de caráter acessório (como em O rapaz, desanimado, entrou em casa). Há uma exceção importantíssima a esta regra: os termos acessórios de caráter restritivo, especificador, não têm vírgula. Se, por exemplo, na última frase que eu citei, a palavra “desanimado” servisse para especificar de que rapaz estou falando, não haveria vírgula: O rapaz desanimado entrou em casa, isto é, o termo intercalado faz distinção entre este e outros possíveis rapazes de quem eu pudesse falar. Os termos restritivos (aposto restritivo, oração adjetiva restritiva, a maior parte dos adjuntos adnominais e complementos nominais) não têm vírgula.

3) Coordenação: a vírgula é usada em todas as coordenações (enumerações de termos ou orações) que não sejam marcadas por conjunção. Quando há conjunção, o uso varia bastante. Quando a coordenação é marcada pela conjunção e, por exemplo, normalmente não se usa vírgula (entre orações coordenadas é mais frequente que entre termos simples); com o ou, usa-se opcionalmente; com o mas, usa-se quase sempre (menos frequentemente quando ocorre entre termos simples). Com outros termos que parecem conjunção mas não são, como portanto, todavia, contudo, logo, então, marca-se sempre a coordenação com vírgula. Vale lembrar que a vírgula, quando aparece junto com a conjunção, vem sempre antes dela.

Nos casos 1 e 2, a vírgula faz um isolamento, ou seja, usa-se uma vírgula antes, outra depois do termo que se quer separar (a menos que ele venha no início ou no fim da frase, é claro). No caso 3, uma vírgula, só, marca a coordenação. (Estas minhas últimas vírgulas, por exemplo, são sintaticamente opcionais, mas, se eu as tirar, o leitor pode entender o “só” como uma restrição ao verbo “marca”, como se eu dissesse que a única coisa que a vírgula faz é marcar coordenação. Mas, como o que eu quero dizer é que a vírgula sozinha basta, pus o “só” entre vírgulas. Opcional, mas sem sair dos critérios.)

Vamos a alguns exemplos e suas respectivas justificativas:
a) Antes de acabar o jogo, o juiz abandonou o gramado. (regra 1: oração adverbial deslocada)

b) Compraremos, ainda hoje, os presentes de Natal. (Regra 1: adjunto adverbial deslocado; como é curto e composto por advérbios, posso tirar as vírgulas; observe-se que ou eu uso as duas, ou nenhuma; uma só, ficaria errado.)

c) O acidente, que envolveu um carro e uma moto, deixou três pessoas feridas. [Regra 2: oração adjetiva (acessória, portanto), de valor explicativo.]

d) Aquele, sim, era o homem da vida de Maria. (Regra 2: adjunto adverbial acrescentado livremente, sem vinculação com nenhum termo específico; nestes casos, ainda que curto, normalmente se usa a vírgula.)

e) Meu filho João passou de ano. (Regra 2: se não há vírgulas isolando “João”, é porque é uma restrição, ou seja, eu tenho mais de um filho e estou falando de apenas um deles; note-se o risco de comprometer o sentido se eu errar a pontuação nesta frase, como em, por mau exemplo: Eu e minha esposa Maria fomos ao parque.)

f) O menino gostava de estudar História, Geografia e Biologia. (Regra 3: os três termos estão coordenados, mas o “e” substitui a vírgula no último caso.)

g) Não tínhamos conseguido falar com o diretor, mas, quando ele saiu do prédio, os funcionários, irritados, o cercaram, e a confusão começou. (Esta é uma típica frase que causa confusão quanto ao uso da vírgula. Há várias, e precisamos analisar cada caso separadamente: a primeira marca coordenação de orações — regra 3; a segunda, casada com a terceira, marca o deslocamento de uma oração adverbial — regra 1; as duas seguintes isolam o “irritados” pela regra 2; e a última marca a coordenação de orações — como já há a conjunção “e”, a vírgula é opcional, mas bastante frequente por se tratar de orações com sujeitos diferentes.)

Há vários outros usos, convém ver uma boa gramática (recomendo para isso a do Bechara). Um deles, muito interessante, é o uso da vírgula para marcar a omissão do verbo, como em O primeiro projeto foi vetado e o segundo, aprovado.
Outras dúvidas são comuns. O uso da vírgula é muito afetado pelo estilo, pelo ritmo que se quer imprimir ao texto, pelo gosto do autor etc. Mas os critérios explanados acima devem ser seguidos, em todo texto formal, por obediência a um padrão que garante clareza, fluidez e elegância ao que se escreve.

Qualquer dia desses eu escrevo sobre outros sinais de pontuação, como o ponto e vírgula, os travessões e os parêntesis. Até lá!

19 de abril de 2010

Autor publicado!

Uma versão um pouco resumida deste meu texto aqui sobre os "porquês" saiu publicada no caderno Eu, concurseiro, do Correio Braziliense de hoje. O que não faz de mim, exatamente, um autor publicado, mas já é alguma coisa, né?

Tem versão online aqui. Não tem mais. Agora, só pra assinante.

31 de março de 2010

Pergunte-me como

Ok, o que não falta na internet é site pra tirar dúvida de português. Por incrível que pareça, alguns são até bons, como o Ciberdúvidas. Mesmo assim, aqui vai minha contribuição. Pergunte o que quiser.

30 de março de 2010

Crase

Eu sei, seu sei. Mais de um ano sem postar nada é quase um recorde mundial. Mas para de reclamar e aprende aí: crase é o nome que se dá à fusão da preposição "a" com um outro "a", que pode ser duas coisas: 1) artigo definido feminino; 2) pronome demonstrativo feminino. O primeiro caso todo mundo conhece. O segundo é um pouco mais difícil de... Não, não é difícil, o pessoal é que não explica direito. É assim: numa frase como "Esta frase ficou mais bonita que a anterior", o "a" destacado, que parece um artigo sozinho, é o pronome demonstrativo. As análises dos gramáticos divergem, mas eu prefiro entender que, neste caso, não se trata da omissão do substantivo "frase", ficando o artigo ali, sozinho, sem pai nem mãe; e, sim, da substituição da palavra "frase" pelo pronome "a". Então, se coincidir uma preposição e esse pronome, faz crase. Por exemplo:
1) A história do Brasil está intimamente ligada à das grandes navegações europeias.
O adjetivo "ligada" pede preposição, a história está ligada a alguma coisa. Mas preposição sozinha não faz crase, esse aliás é um erro comum de quem não sabe usar o acento grave. Vê uma preposição, e já taca uma crase. Então repito: preposição sozinha não faz crase. Mas é necessária para que ela ocorra. Então, voltemos ao exemplo: existe preposição, e ela se une com o pronome demonstrativo "a" que substitui a palavra "história". Crase.
Este caso da crase com pronome demonstrativo pode acontecer antes de quase todo tipo de palavra, diferentemente da crase com artigo, que só acontece antes de substantivo feminino. Olha só:
2) Nossa história está ligada à que nossos avós contam. (pronome)
3) Nossa história está ligada à de vocês. (preposição)
4) Nossa história está ligada à portuguesa. (adjetivo)
5) Nossa história está ligada à contada nos livros. (verbo)
6) Nossa história está ligada à sua. (pronome possessivo)
Quanto a esse último exemplo, vale destacar que a crase é obrigatória mesmo antes do pronome possessivo, caso em que muita gramática ensina que é opcional. Porque o que é opcional antes do pronome possessivo é o artigo, e não a crase. Portanto, se for crase de preposição com pronome, ela é obrigatória.

Então não existe "à" se não for um desses dois casos. Muita gente sai craseando qualquer "a" que vê na frente. É só raciocinar um pouquinho, nem dá tanto trabalho assim. Tem um truque: se a crase é a fusão da preposição com a palavra feminina "a" (seja artigo seja pronome), então como fica se a palavra for masculina? Fica "ao", sempre, tanto no caso do artigo quanto no caso do pronome.
Assim: se a palavra "história", dos nossos exemplos, for trocada por uma masculina (não precisa manter o sentido), o "à" vira "ao". Se não virar, é porque não tinha crase.
7) Nosso passado está ligado ao das grandes navegações.
8) Nosso passado está ligado ao seu. (Veja que o "ao" é obrigatório, assim como a crase seria se a palavra fosse feminina.)
Voltando agora ao primeiro caso, o da preposição com artigo definido feminino, o melhor jeito de não errar é lembrar sempre que ela só ocorre se houver artigo. As dúvidas de crase têm mais a ver com o artigo do que com a preposição. Preposição quase todo mundo sabe quando é que tem, quando é que não tem. Artigo é que gera dúvida. Por exemplo, outro dia um arquiteto (aliás meu pai) ficou em dúvida com a seguinte frase:
9) Os afastamentos obrigatórios são áreas destinadas a passagem eventual de encanamento ou fiação de interesse público blablablá.
Tem crase ou não tem? Bom, que tem preposição, isso não é dúvida. Alguma coisa é destinada a. Mas tem artigo antes de "passagem"? Aqui, especificamente, tanto faz. Depende do sentido que se quer enfatizar: se se quer dar um sentido mais genérico à palavra "passagem" (qualquer passagem, em qualquer tempo, etc), é melhor sem artigo, e portanto sem crase; se a ênfase é para uma passagem já mais ou menos prevista, esperada, pode ter artigo, e daí crase. Tanto faz, no fim das contas.
Noutros casos, o artigo é obrigatório, porque é preciso definir o substantivo:
10) A tubulação destinada à fiação antiga do prédio será substituída etc.
Trata-se de uma fiação específica, o artigo é obrigatório, a crase também.
O mesmo vale para indicação de hora ou dia:
11) O evento vai de 10h a 11h.
12) O evento vai das 10h às 11h. 
No exemplo 11, não há artigo no primeiro termo, não deve haver no segundo, por paralelismo. É só a preposição. No outro, há artigo nos dois. Crase, portanto.

O pessoal se atrapalha também com o "há". Aqui é fácil: para indicação de tempo passado, "há", sempre. Para outras indicações (distância, hora, tempo futuro), preposição "a", com ou sem crase dependendo de haver ou não artigo ou pronome demonstrativo depois, vê aí.
13) Eles saíram há pouco tempo, há dois dias, há uma semana. Eles estão aqui há três dias.
14) Vamos sair daqui a pouco, daqui a duas semanas, às três horas. Estamos a três quilômetros do centro, estamos a cinco minutos da estação.
Decora, vai. E não existe, no português, em caso nenhum, "á".
Tem um posto de gasolina aqui perto de casa com uma placa assim:
Horário de funcionamento:
Segunda à sexta: 8h as 22h.
Sábados: 9h às 23h.
Domingos e feriados: 12h ás 19h.
Quer dizer, o cara apostou que uma delas ia estar certa, ou que qualquer coisa dava no mesmo. Corrige aí nos comentários, vai.

Outra dúvida com a crase é antes dos topônimos, os nomes dos lugares. Vou à Veneza ou vou a Veneza? Tudo depende, de novo, do artigo. Preposição eu sei que tem, quem vai vai a etc. Mas e o artigo? Sugiro testar com o verbo "visitar".
15) Visitei Veneza (sem artigo). Portanto, vou a Veneza.
16) Visitei a Itália (com artigo). Vou à Itália.
Funciona sempre. É fácil. Larga de ser preguiçoso e para de errar crase, que ninguém aguenta mais. Outro dia vi um anúncio de "pizzas àpartir de 9,90". Se a pizza for no mesmo capricho com que o cara usa a crase, melhor pagar mais caro noutro lugar.

21 de janeiro de 2009

Desacordo ortográfico

A ideia (gostou, assim, sem acento? Vai acostumando, então) de unificar a grafia do português nos diversos países lusófonos é boa. Fortalece o mercado editorial, o que me faz ingenuamente esperar que o preço dos livros possa assim diminuir um pouco. Unifica o ensino de português em outros países, consolidando a importância do Brasil como o maior país lusófono. Etc. Mas um problema razoavelmente sério, que consiste na enorme diferença entre a norma-padrão portuguesa e o uso (mesmo culto) brasileiro não é resolvido pelo Acordo Ortográfico, nem poderia ser. Não é a sua intenção.

O melhor (ou pior) exemplo dessa diferença e dos problemas que ela implica para quem precisa usar adequadamente a variedade padrão da língua, no Brasil, é a colocação pronominal. Meus alunos, para ficar só num caso, torcem o nariz e duvidam de mim quando eu digo que a língua falada no Brasil prefere a próclise (isto é, o pronome átono antes do verbo, como em "me deitei"), sempre, mesmo no nível formal. Eles estranham porque leram em gramáticas e ouviram dos professores, a vida toda, que o certo é sempre sempre sempre a ênclise (como em "deitei-me"), e acreditam piamente nisso, mesmo nunca tendo usado na vida uma ênclise sequer, exceto na escola e em provas de concurso. Isso é um problema, que é difícil de resolver. Se eu pudesse, nem falava de regra de colocação pronominal em sala. Mas não posso, aí eu falo, e os alunos me olham feio se eu ensino o que a gramática diz e se eu me recuso a ensinar o que a gramática diz. Vida de professor não é fácil...

Mas não era para isso que eu ia escrever hoje. Mas tem a ver. O português do Brasil e o de Portugal são tão diferentes, que nem o Acordo Ortográfico conseguiu resolver o problema do porquê. Já expliquei aqui como funciona o porquê no Brasil. Agora vou explicar como é em Portugal e, vejam só, é bem diferente. E vai continuar diferente. Mesmo com a unificação da ortografia.
Prepare-se: em Portugal, o porque é sempre junto. Mesmo na pergunta. Entendeu? Então tá, pode ir. Não, espera! Tem um que é separado: é quando o que é pronome relativo. É um caso fácil: pronome relativo é um que que vem sempre referido a um substantivo anterior. Assim:
"Não entendi o motivo por que você foi embora."
Está vendo que o "que" se refere a "motivo"? Não? Substitua, então, na segunda oração. Fica assim: "você foi embora por esse motivo". Tem outros exemplos disso na postagem sobre o porquê no Brasil. Neste caso, o uso nos dois países é idêntico.

O resto é junto, sempre. Eles consideram o porque um advérbio interrogativo, quando usado em frases interrogativas diretas e indiretas, e uma conjunção, quando expressa causa, finalidade ou coordenação explicativa. Olha os exemplos:
1) Porque você não veio?
2) Nunca me disseram porque você não veio.
Os casos 1 e 2 são exemplos de advérbio interrogativo. São diferentes do uso no Brasil. Para o uso do porque como conjunção, fica o mesmo que nós usamos. Tem ainda um caso especial em Portugal: se o porque vier no fim da pergunta, ou se a frase não tiver verbo conjugado, escreve-se porquê, com acento. Assim:
3) Você ainda não chegou porquê?
4) Porquê esperar tanto?
5) Porquê tanta dor no mundo?
Parece mais fácil que no Brasil, certo? Mas olha que coisa: consultados alguns sites de dúvidas de português, percebi que os professores em Portugal parecem ter tanta dificuldade quanto nós, brasileiros, em ensinar o uso dos porquês para seus alunos. Quer dizer, comprova-se o que eu já tenho como convicção há um tempo: simplificar a língua não facilita o aprendizado. O que se exige do professor é que ele domine bem o que está ensinando; e do aluno, que estude o que vê em sala, senão não adianta nada.

Lá na postagem sobre o porquê brasileiro eu deixei uns exercícios para os visitantes do blogue responderem, mas ninguém se atreveu, ao menos não publicamente. Dou, então, as respostas, primeiro conforme a regra brasileira, depois conforme a regra portuguesa. Mas fica a questão: se no uso dos porquês a regra pode ser diferente, e continuará sendo mesmo com a unificação ortográfica, por que (separado) não estender a lógica para outros casos, como a colocação pronominal ou algumas regras de regência verbal? Eu quero começar frases com pronome oblíquo átono! Próclise livre já!

Vamos às respostas dos exercícios:

I - Só gostaria de saber _________ a secretária não me avisou antes sobre o problema. (por que, no Brasil; porque, em Portugal)

II - Foi ruim revê-la, _________ as lembranças ainda doíam no coração. (porque, em ambos)

III - Os direitos __________ lutam os grevistas são legítimos. (por que, sempre)

IV - Ela foi embora, assim, sem mais, e nem me explicou ________. (por quê e porquê)

V - _______ o governo investe pouco em educação, os índices de analfabetismo ainda são muito altos. (porque, nos dois)

Alguma dúvida? Deixa aí nos comentários.

Até!

19 de novembro de 2008

Atualização ortográfica

Conforme explicado aqui, começo a atualizar também este blogue às novas regras ortográficas estabelecidas pelo Acordo de 1990, que entra em vigor ano que vem.
Já fiz toda a atualização do Palavras à pena, e me surpreendeu constatar que são raríssimas as palavras que mudam. Sério. Ou eu devo estar usando sempre as outras. Nesta postagem aqui, por exemplo, ainda não apareceu nenhuma palavra que precise de alteração. E ainda não arrumei tempo para falar do porquê português.
Quem sabe até o fim do mês?